A noção de cultura material é fundamental e onipresente no estudo sobre as sociedades antigas. A literatura cientifica desse assunto é tão abundante que as vezes, é difícil lhe conferir um sentido. A constatação inicial foi simples: se o conceito de cultura material é usado em todas as disciplinas de ciências humanas, seu caráter evolutivo exige um questionamento constante da abordagem teórica feito para ser adaptado de acordo com natureza do assunto.
Neste livro, queremos sublinhar as diferentes faces do dispositivo conceitual que nos permite fazer as perguntas certas em nossas disciplinas e especialidades. Por esse motivo, pareceu-nos que a abordagem temática era uma das maneiras mais apropriadas de lidar com o assunto. Este livro tem por objetivo oferecer aos leitores um estudo das culturas materiais cotidianas usando fontes essenciais. Esse processo reúne as chaves inerentes às disciplinas que tratam da história, trabalhando coletivamente em uma análise que trata os diferentes aspectos e momentos da vida das antigas sociedades. O objetivo ainda não é propor uma nova exposição cronológica de fato, mas revelar a mecânica do trabalho de análise histórica. Em primeiro lugar, isso exige um debate sobre a natureza da cultura material.
O que é a cultura material?
Nesta obra, trabalhamos sobre a “cultura material”, que se refere a processos, ou seja, às interações e aos vínculos entre os seres humanos (e até mesmo os animais) e seus ambientes. Esses processos formam a cultura. Embora a cultura seja dita “material”, ela não é oposta à cultura “imaterial”. Como estamos lidando com as relações entre os seres humanos e seu ambiente, devemos considerar a interseção entre situações e práticas por meio de gestos e símbolos de modos materiais e imateriais. O foco está na construção de significados vinculados a objetos, lugares ou praticas.1
Sobretudo porque a maneira como os seres humanos usam ou consomem os objetos e a codificação dos espaços não é fixa e evolui ao longo do tempo e em todas as sociedades. Ela também pode ser definida de forma diferente nessas sociedades, de acordo com os grupos sociais (definidos por status social, gênero, etc.). Portanto, a “cultura material” não deve ser vista como um conjunto de códigos tangíveis que refletem o sistema, as normas e as práticas de uma antiga sociedade. Em vez disso, os objetos e de forma mais ampla as evidencias materiais são indícios que podem ser interpretados à luz do contexto em que foram encontrados.
A origem da expressão
A expressão “cultura material” nasceu no final do século XIX nos ambientes antropológicos anglo-saxões. Naquela época, a cultura material se referia a uma manifestação de ideias, de sinais e símbolos específicos de uma sociedade. Havia um desejo de fazer uma classificação racional das coleções antropológicas, que funcionaria por meio de sistemas de grupos de objetos materiais de acordo com suas formas e funções. Nessa época, os ambientes intelectuais eram fortemente influenciados pela teoria da evolução.
Em 1877, o antropólogo americano Lewis Morgan publicou um trabalho chamado “Ancient Society” (Sociedade Antiga), na qual apresentou uma classificação antropológica das sociedades antigas com base em critérios materiais (Morgan, 1877).2 Os modelos sugeridos por essas visões obsoletas promoviam a ideia de uma evolução imutável das sociedades. Todos esses modelos seguiriam a mesma evolução, graças aos avanços tecnológicos e às mudanças culturais que induziram; como a agricultura, a domesticação, a metalurgia e até mesmo a escritura. De acordo com este ponto de vista, o Homem começa em um estado animal de sobrevivência e, graças à evolução, atinge o pico da evolução representado pela sociedade europeia do século XIX.
Espécimes culturais considerados como objetos
O conceito de cultura matéria atravessou rapidamente as fronteiras da disciplina e foi adotado pelos arqueólogos europeus em seus estudos. No século XIX, a arqueologia europeia ficou famosa graças à proliferação da pesquisa arqueológica. Assim como seus colegas antropólogos, os arqueólogos acumularam grandes coleções de artefatos, tanto públicos quanto privados. Durante os séculos XVII e XVIII, esses artefatos pareciam ser mais do que curiosidades arqueológicas: eles eram estudados em detalhes na tentativa de desvendar os mistérios das sociedades antigas. Eles logo se tornaram uma ferramenta para datar e identificar sítios arqueológicos.
No começo do século XX, a noção de cultura material recebeu um novo impulso na Uniao Soviética e, posteriormente, nos países do antigo bloco socialista. Em 1919, Lênin fundou o Instituto de História da Cultura Material da URSS e na década de 1950, o Instituto Polonês de História da Cultura Material foi particularmente dinâmico.3 A concepção materialista da teoria de Karl Marx no final do século XIX foi particularmente propicia ao estudo da cultura material, especialmente no que se refere à classe trabalhadora, sobre a qual pouco se conhecia em fontes escritas. Na Europa Ocidental, essa pesquisa era desconhecida até a década de 1960. A “Ecole des Annales” (Escola dos Anais), fundada em Paris na década de 1920, marcou um ponto de virada favorável aos vestígios materiais. Foi sobretudo a obra de Fernand Braudel que deixou sua marca na historiografia com a publicação de seu trabalho sobre a “civilização material” no final da Idade Média e da Idade Moderna.4 Isso marcou o início de um interesse pela história das mentalidades e da vida cotidiana, especialmente na Idade Média.5 A arqueologia como disciplina cientifica entendeu-se então para todos os períodos, desde a pré-história até a Idade Média. O termo “cultura material” tendia a ser confundido com arqueologia e era usado menos frequentemente. Ele reapareceu nos países anglo-saxões na década de 1990, no contexto do estudo de objetos de culturas pré-modernas. A criação do “The Journal of Material Culture” (A Revista de Cultura Material), em 1996, é testemunha desse novo significado, que é muito voltado para a antropologia histórica. Ao mesmo tempo, a arqueologia estava evoluindo, concentrando-se na tipologia de objetos e no trabalho em série.
O estudo da “cultura material” neste livro
Neste livro, o termo “cultura material” é usado em um sentido amplo, abrangendo todos os vestígios de sociedades antigas, de monumentos a artefatos. Entretanto, os leitores também encontrarão estudos inovadores e específicos sobre artefatos. Esses estudos se concentram sobre um objetivo especifico, levam em conta os resultados de analises cientificas de ponta (caracterização de materiais, paleogenética, etc.). E os utilizam para entender o lugar desse objeto na sociedade (o uso e os usuários, o simbolismo, a mudança de função etc.). Todos os recursos disponíveis são mobilizados para entender o funcionamento social, econômico e cultural das sociedades. Este gosto pela interdisciplinaridade (história, arqueologia, história da arte, antropologia social, arqueociências) desenvolveu-se especialmente nas últimas décadas e tem sido a principal força motriz por trás dos intercâmbios franco-brasileiros em nosso programa.
Notas
- Veja, por exemplo, os capítulos “Morrer”, “Morar” e “Orar”.
- Ancient Society Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization, do Lewis. H.M, da MacMillan & Company, Londres, 1877.
- Vejam-se diversas contribuições em La culture matérielle, un objet en question. Anthropologie, archéologie et histoire, de Bourgeois, L., Alexandre-Bideon, D., Feller, L., Mane, P. (dir.), Caen, Francia, 2018.
- Civilisation matérielle, économie et capitalisme, XVe-XVIIIe siècle, I-III, Paris, 1979. O primeiro volume aparece em 1967.
- “Histoire de la culture matérielle”, em Le Goff, J. (dir.), La nouvelle histoire, Paris, 1978, p. 191-215.